quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

O TIO

Igreja dos Anjos-Noite
À porta da sopa do pobre está uma pequena multidão de pessoas, que entram, saem, ou simplesmente conversa.
Ao longe, começa a aparecer uma limusine, que acaba por estacionar à porta da mesma
Interior do carro
Um homem na casa dos 30/40 anos fala ao telefone, com ar preocupado.

Tio
A menina é tonta? Convidar a Cachucha Maria? Já não bastava ser eu a levar o jantar, e agora ainda para mais, a menina convida essa histérica? Já viu o que ela come? Aquilo só para ela é um ordenado.
Acabou de me fazer três rugas com a conversa, sua oca, que não pensa. Deixe lá, quem leva comida para dois, também leva para quatro.

Põe a mão na testa em sinal de desespero
Não Patucha, bolas que você é burra. Pense, menina, pense. Claro que não convidei mais ninguém, a Cachucha é que come por duas. Mas que parva, não percebe nada. Vou a caminho levantar o nosso jantar. A despesa que a menina me arranjou Vou só cumprimentar e agradecer à Anucha, por nos preparar a ceia desta noite. Sabe como é, ama-de-leite é quase mãe. Sim, eu dou. Bejinho, quiducha até já

Perfuma-se, em exagero, com ar enojado, nos braços, no cabelo, no pescoço, encolhe os ombros, e põe na boca também. Começa a ficar nublado do exagero de perfume.
O carro pára à porta da sopa da pobre.
Vê-se o motorista a sair, contorna o carro, e vai abrir a porta de trás. Quando a porta abre sai uma lufada de fumo.
Sai uma figura imponente e bem-vestida, esbraceja ao sair, envolto no fumo, mas que logo se recompõe. Traz um chapéu alto, uma bengala, e um grande casaco leopardo dos ombros até aos pés.

Tio
Baltazar, traga o saco.
Baltazar, vai ao porta- bagagens, de onde retira um saco enorme, castanho

Tio
Mas, tá doido? - grita enquanto dá uma bengalada em Baltazar - O Chanel, Baltazar, o Chanel. Já viu que mal que esse fica, com este casaco que tenho vestido? Ton sur Ton, Baltazar.Estilo, Moda,… qualquer coisa… Isto é insuportável...
Impaciente
Não sabem nada. O preto Baltazar, o preto.

Baltazar
EU?

Tio
Não é nada você, homem, é o saco!- Mas que parvo que este me saiu
Dá-lhe outra bengalada e vai ele mesmo buscar o saco
Pendura o saco nas mãos de Baltazar
O tio dirige-se para junto dos sem abrigo, de braços abertos, seguido logo atrás, por Baltazar.

Tio
Meus queridos, como vão passando? Ai, tão magrinhos, tão elegantes. Muita fominha, não? pois claro. Mas olhem que lhe fica tão bem

Pega na mão de um sem abrigo esquelético e com ar abatido, e faz com que este dê uma volta, sobre si.

Tio
Olhe para si. Quem o viu, e quem o vê. Desde a semana passada, para cá, emagreceu imenso. É que não lhe fica nada mal. Está janota.
Saca da mala, de maquilhagem, e rapidamente faz-lhe umas rosetas coloridas na cara.

Tio
Um tonzinho e até parece que foi ao solário. Perfeito, fazia um figurão na Vogue.
Ajeita-lhe a gola do casaco, dá umas voltas ao cachecol, dá-lhe uns toques no cabelo, com uma escova e laca, que saca da mala, e o outro fica irreconhecível.

Tio
Pronto, agora sim. É preciso é ter estilo.

Sem-abrigo 1
Veja lá o que faz. Da última vez que passou por cá, não comi durante dois dias.

Tio
Que horror, o que as pessoas dizem. Então não se vê logo? Mas onde é que você anda a pedir? Na Morais Soares? No Rossio? Só lá, é que você passa despercebido. Mas olhe, não foi isso que eu vim cá tratar hoje. Hoje tenho um jantar com uns amigos influentes e para vos defender, preciso de levar amostras de toda a comida que servem por aqui. E olhe, divida em quatro caixas, que é para cada representante poder avaliar. E muita salada, para colorir e sempre dá outro aspecto.

Baltazar – grita -
Dê cá o saco. Estão aqui umas maçâs com óptimo aspecto
Diz enquanto observa atentamente as maçâs.
Não são portuguesas. E ainda por cima são verdes.

Sem-abrigo 2
Então?, são verdes porque são Smith

Tio
Smith, não. Bettencourt, meu querido Bettencourt. Tudo o que é verde, é dele. Quer ver que você sabe mais que eu? Você por acaso já foi ao estrangeiro, já? Eu, que já fui mais de vinte vezes? Tadita da criatura, já fala, acha que já sabe.

Baltazar – grita –
Traga o saco.
Pega na cesta e entorna todas as maças para dentro do saco.

Sem-abrigo 2
Então? Leva as maças todas? Mas é a fruta que temos para hoje.

Tio
Devia estar era agradecido. Tudo verdíssimo. Nem daqui a quinze dias aquilo estava bom. É um favor que vos faço.

Sem-abrigo 1
Aqui está, Tio, o que me pediu. Quatro caixas, com o jantar de hoje, separadas e com muita salada. Aproveitei e trouxe o meu também. Croquetes. É servido?

Tio
Horrorizado
Croquetes? Nem pensar. Você já viu bem, o seu tamanho? Um homem como você, não se sustenta a croquetes, e depois já viu, é só fritos. Isso só lhe faz é mal.

Baltazar – grita –
Guarde os croquetes do homem. Olhe, e dos outros também. É menos um problema na vida deles, e é a minha boa acção de hoje. Realmente, este país vai de mal a pior. Onde é que isto já se viu? Croquetes? Tss,tss,tss à miséria a que chegamos.
Baltazar apressa-se, a retirar do saco preto umas marmitas, e começa a recolher toda a comida dos sem abrigo.

Tio
Então e mais nada?
Não bebem nada? .
Sem-abrigo
Às vezes, quando está frio, dão-nos também uma pinguita, mas hoje não deram.

Tio
Não deram? Mas você já viu o frio que está hoje? Faça o favor de ir lá dentro imediatamente reivindicar o que é seu, homem.
O sem-abrigo, desaparece no interior, para voltar de seguida, carregado com algumas garrafas de vinho tinto.

Tio
Ora deixe lá ver…
Observa os rótulos
Pois,… vou levar isto também. Vou levar, para que eles possam ver o que vocês criaturas bebem. Malíssimo. Um vinho sem qualidade nenhuma. Onde é que isto já se viu, tratarem pessoas da vossa categoria desta forma?. Assim posso provar-lhes o que está a acontecer.

Baltazar- grita- Vamos embora.
Adeus amigos, para a semana passo outra vez. Vou fazer uma recolha de roupa, para ajudar as pessoas do Haiti, e o que não me servir, não conseguir vender ou eu não gostar trago para vocês, meus queridos. Adeus

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