sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Incómodo

Um homem de óculos de sol está parado em pé na plataforma do metro, com um cão e uma bengala. Chega outro homem que o cumprimenta.

HOMEM 2

Então, pá, 'tás bom?

HOMEM 1

(sem grande familiaridade)

Ah. Olá.

HOMEM 2

Então, como é que vai isso?

HOMEM 1

(com ar aborrecido)

Vai-se andando e assim.

O metro chega e ambos entram dentro da carruagem. Imagem carruagem de metro, com os dois sentados um ao lado do outro. Em frente ao banco deles está um homem vestido com uma camisa rosa choque e um fato azul turquesa brilhante com gel no cabelo.

HOMEM 2

    (muito alto)

Eia bem, já viste este palhaço à nossa frente? Fogo, g'anda idiota. Aquela camisa e aquele fato. Foda-se, nunca vi gajo tão foleiro.

HOMEM 1

(visivalmente incomodado)

Err...mmmm...err...

HOMEM 2

Não 'tás a ver? Fogo, o gajo é mesmo mesmo mesmo fatela. Que mau gosto. Olha, meu, olha lá.

HOMEM 1

(a falar para dentro)

Err...como é que hei-de dizer isto?

HOMEM 2

(a apontar para o homem)

Topa-me a pinta do gajo. Quem é que se veste assim? Quem raio é que lhe disse que rosa choque e turquesa ficava bem? O gajo não tem um espelho em casa? Ninguém lhe disse que 'tava mesmo fatela?

HOMEm 1

(a encher-se de coragem)

Err...tu sabes que eu sou cego, não!?

HOMEM 2

(primeiro embaraçado, depois confortável)

Ah, pá. Desculpa, não sabia. Pensava só que gostavas muito de cães. E que eras tipo Vitorino d'Almeida, com a bengala e tal, só para o cenário.

HOMEM 1

(estupefacto)

Mas sim, sou cego, sim.

O metro pára e o senhor da frente sai. Imagem senhor da frente da mudar de carruagem. Entra um grupo de senhoras de idade que se senta nos bancos do lado oposto aos deles.

HOMEM 2

(a falar muito alto)

Mas isso até é fixe, pá. Imagina que o metro 'tava cheio e estas velhas não tinham onde se sentar. Eu tinha de me levantar e tu não. G'anda sorte, não ver é bué fixe.

HOMEM 1

(com um riso amarelo e cordial)

Errr...sim...claro...

HOMEM 2

Sim, não tinhas de aturar as velhas. E não só, pá. Vocês ouvem bué bem e são bué bons em música e o caraças. Curto bué o Stevie Wonder. Sabes aquela música dele? “Never Dreamed You'd Leave in the Summer”? Acho essa música brutal...

HOMEM 1

Ah...agora não estou a ver, não.

HOMEM 2

Claro que não 'tás, pá! És cego! Mas claro que conheces, meu. Não 'tás a ver? É aquela que é assim: “tan tan tan tan tan tan”

HOMEM 1

Não, desculpa, não estou a ver.

HOMEM 2

Pá, como é que tu te dizes cego e não conheces o Stevie Wonder?

HOMEM 1

Eu não me digo cego, eu sou cego.

HOMEM 2

OK, pá. Mas isso também é fixe prás gajas, não? Deves sacar bué. Não tens de fazer nada. Apareces, elas têm pena de ti e pimba, já ganhaste.

HOMEM 1

Não, por acaso sou casado e tenho três filhos.

.

HOMEM 2

(a dar um pancada no ombro do Homem 1 e a piscar o olho)

Mas aposto que também dás umas por fora, não é, ó malandro? E é bué fácil. Fogo, g'anda sortudo. Agora fiquei com inveja, também queria ser cego.

Homem 2 levanta-se, começa a chorar e a gritar.

HOMEM 2

Aaaaaaaaaaah...porque é que fui eu nascer com visão? Porque é que fui escolhido para ter olhos? Porque é que eu nunca consegui ter um acidente que me tirasse a visão? Não tenho sorte em nada, sou um desgraçado, um coitado.

.

Homem 1 levanta-se, tira uma caneta e um lápis do bolso e enfia-os nos olhos do Homem 2. Separador com letras a dizer “uma semana depois...” Imagem metro, com Homem 2 de óculos de sol e um ar extremamente feliz e um sorriso de orelha-a-orelha, a bater com a bengala metálica nas barras do metro.

HOMEM 2

Tenha a bondade de me auxiliar, por favor. Tenha a bondade.


FIM


Drina e Chauncey Gardiner


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