O mal amado
Fevereiro 2010
genérico
Mercearia do Bairro
Está um homem de meia idade a limpar o estabelecimento, entra um cliente da mesma idade.
Merceeiro (Júlio)
Olá, João. Não te via há algum tempo.
João ( cliente)
Olá, Júlio. Nem te estava a ver! A Luisa saiu de casa e não tenho andado bem. Hoje venho eu às compras.
Júlio
Eu dou-te uma ajuda. É para isso que cá estou, para ajudar os clientes. Vê lá tu, parecia tão boa rapariga e dava-te tanto jeito. Agora com esta idade, já não arranjas ninguém, vai ser uma chatice para ti...
João
Achas? Ainda me sinto tão novo e ágil.
Júlio
Parece, meu querido, parece. E olha não desmoralizando, vai ficar ainda pior. Bem pior. De dia para dia. Diz lá do que precisas.
João
Para o jantar vou levar uma daquelas embalagens de bifes congelados que têm óptimo aspecto, para ver se ganho energia.
Júlio
Mas, estás doido? Sabes o que aquilo é? Aquilo de bife, não tem nada. É tudo modificado. Diz até que faz mal aos rins, para além disso, já nem há vacas! Vacas à séria.
João
Tens razão, então vou levar um peixinho, diz que faz bem à cabeça.
Júlio
Peixe? Aquilo só faz é cancro. Todo contaminado? Sabes o que eles comem? Plástico, alcatrão, gente morta...
João
Que horror, Júlio. Então, do que é que vou viver? Frutas e vegetais?
Júlio
Eu se fosse a ti, também não me metia nisso. Isto agora é só transgénicos. Mudaram o DNA todo ás bichinhas. Diz até que faz mal à pele. Ficas cheio de carrapatas penduradas.
João
Júlio. Tu estás a deixar-me preocupado. Tu falas como se não houvesse amanhã. Ainda me sinto pior do que quando entrei. Sem esperança, sem futuro...
Júlio
E fazes bem, porque não há. Pelo menos para mim. Estou a pensar matar-me hoje. Queres matar-te comigo ? Também, estás tão mal, que o melhor que fazias era matar-te também. O que achas? Fazias-me companhia.
Nisto entram 2 assaltantes no estabelecimento.
Assaltante
O dinheiro ou a vida?
João
A vida. A vida. Mata-me já aqui. Por favor mata-me.(enquanto se agarra à perna do assaltante)
Assaltante
Meu, tás te a passar! Umas Levi`s novinhas. Baza já daí.(sacode a perna)
João
Por favor. Por favor. Júlio, diz-lhe para me matar, faz lá esse favor aqui ao teu amigo.
Júlio
Sim, por favor matem-nos, matem-nos. Vocês são uma benção vinda do Céu. Aleluia. Aleluia. Aleluia! (agarra-se à perna do outro assaltante)
Assaltante
(para o outro assaltante)
Meu, vamos bazar. Estes ainda são piores do que nós. Gandas malucos! Achas que os gajos dão na erva?
Assaltante 2
Meu! Isto é muito à frente! São químicos quase de certeza, meu. Químicos. Os gajos tão todos queimados, meu. Bora aí bazar...deixa os manos curtir.(saem)
Júlio
Eu nem acredito ...foram-se embora...
João
Olha...pois foram...(com ar triste).Isto é um sinal, Júlio, um sinal. Vamos comemorar(ajuda o amigo a levantar-se). Ou achas que já modificaram a cerveja e as miúdas também?(saem)
m o DNA todo ás bichinhas.
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